O
Pensamento Epistemológico em Karl Popper
Popper elaborou sua epistemologia (...) ao
mesmo tempo dentro e fora do empirismo lógico ou neopositivismo,
originado do Círculo de Viena, fundado em 1924 por Schlick e tentando fazer uma
síntese entre o empirismo e a logística. Dentro, porque é um de seus
primeiros integrantes e um dos defensores de suas idéias essenciais; fora,
porque apresentou-se desde cedo como um dos mais ardorosos dissidentes da
“Escola”, sobretudo no que diz respeito aos critérios de verificação experimental
nas ciências.
Por sua obra, Popper é mais conhecido como
filósofo político do que como filósofo das ciências. Contudo, é de primeira
importância sua contribuição no campo da filosofia das ciências. Neste domínio, seu pensamento se opõe a duas
tendências marcantes da epistemologia anglo-saxônica: a do positivismo lógico e
a da filosofia da “linguagem”, que inspiraram, de um lado, o neopositivismo
lógico e, do outro, a filosofia “lingüística”.
1. Princípio do Empirismo
(...) O projeto da Escola de Viena foi o de
tentar uma unificação do saber científico e elaborar um método científico comum
a todas as ciências, de tal forma que fosse uma garantia contra o erro, contra
o acúmulo de conceitos vazios de significação e contra todos os pseudoproblemas
que tanto atravancaram as discussões epistemológicas.
(...) O esforço inicial do empirismo lógico
consistiu em delimitar o domínio das linguagens empíricas e em descrever
o estatuto metodológico das ciências positivas. (...) A preocupação fundamental do empirismo consistia em reduzir
todo o conteúdo do conhecimento a determinações observáveis.
(...) Se levarmos em conta as linguagens
lógicas tornando possível a vinculação de uma hipótese a outras hipóteses,
(...) somos forçados a admitir, como critério do sentido, o critério da tradutibilidade,
ou seja, da ligação dedutiva. O importante é que, em qualquer hipótese, há
sempre uma referência à experiência.
(...) Por sua vez, a linguagem metodológica
torna-se o instrumento fundamental da filosofia, sobretudo em sua forma válida,
isto é, na forma de uma teoria da ciência. Não obstante, a linguagem
metodológica não comporta proposições sintéticas, pois não afirmam nem negam
algo a respeito do real. Ela comporta apenas proposições analíticas e
proposições descritivas, não introduzindo conteúdo de conhecimento capaz de
transcender o domínio do empiricamente observável. Evidentemente, se o único
discurso dotado de sentido reduz-se ao discurso da ciência e da
metodologia científica, não há nenhuma razão para que tenha validade qualquer
discurso de ordem filosófica.
No fundo, trata-se de saber se a interpretação
neopositivista do princípio do empirismo está em perfeita adequação com a
prática efetiva das ciências. Eis o campo de reflexão de Popper. Algumas
considerações sobre o princípio do empirismo:
1. Em síntese, o postulado empirista significa
a impossibilidade de poder existir uma
intuição intelectual pura.
2. Há duas maneiras de entendermos o papel da
experiência: (a) Segundo o positivismo, o único conteúdo de conhecimento de que
podemos dispor são as constatações sensíveis; (b) Todavia, graças à lógica,
torna-se possível evidenciarmos, na massa daquilo que é constatável, certas
regularidades; ademais, podemos estabelecer certas ligações sistemáticas e
constituir um saber universal. O papel
da lógica é o de colocar em jogo apenas as formas operatórias. Ela não pode
fornecer nenhum conteúdo real. Mas é graças à intervenção dessas formas que
podemos organizar o conteúdo de uma ciência.
3. Através da epistemologia conceitualista,
há um retorno à experiência sensível. O objetivo, porém, dessa volta é a
obtenção de conteúdos de conhecimento. O dado perceptivo já engloba um conteúdo
de significação. Ele é captado na própria apreensão do sensível, mediante uma
operação intelectual de tematização.
4. Se não há intuição intelectual, não podemos
fazer a economia da percepção. E se o pensamento conceitual nos dá acesso ao
inteligível, não é à maneira da idéia pura, pois o conceito comporta uma
referência à realidade empírica: através do inteligível, ele visa o sensível.
Portanto, só pode abrir a possibilidade de uma ciência, na medida em que for
restituído à coisa mesma que ele tem por função esclarecer.
5. No fundo, o que a filosofia das ciências de
Karl Popper coloca em jogo é o problema clássico da indução. Trata-se de
elucidar duas questões: (a) como é possível a elaboração de uma teoria
científica a partir de observações de número sempre finito? (b) como é possível
o estabelecimento da “verdade” de uma teoria apoiando-se apenas em bases
observacionais? O primeiro problema faz apelo a uma teoria da invenção.
O segundo, de ordem mais epistemológica, diz respeito ao que se convencionou
chamar de “valor” das teorias científicas. O que vai nos
interessar na filosofia das ciências de Popper é apenas a elucidação deste
último problema, na medida em que sua posição se opõe às do empirismo lógico,
notadamente às de Carnap.
2. Princípio da verificação e da falsificação
A preocupação epistemológica essencial de
Popper diz respeito à elucidação do “valor” das teorias científicas, ou seja,
ao grau de confiança que podemos depositar nelas, em função dos dados empíricos
que podemos dispor. Neste nível, ele deu uma contribuição decisiva para a
solução de dois problemas fundamentais: o primeiro problema é o da demarcação
entre ciência e metafísica; o segundo é o problema da indução e de seu
valor para a ciência. Popper teve que combater os dois dogmas
fundamentais das teorias do conhecimento e das epistemologias empiristas
tradicionais. A ciência deve repousar numa base observacional mais ou menos
intangível. A ciência deve utilizar um método indutivo, por oposição ao
método especulativo das pseudociências e da filosofia.
(...) O problema lógico da indução
consiste em saber sobre o que podemos nos basear para tirar, de vários casos
particulares observados, conclusões relativas aos casos não observados. (...) A
esta questão, Popper responde dizendo que, por maior que seja o número de
enunciados observacionais verificados, não temos o direito de concluir pela
existência da verdade de uma teoria universal, devido ao seu caráter infinito.
Por exemplo, a proposição universal “todos os cisnes são brancos” não é
verificável, mas falsificável. Em contrapartida, a proposição
existencial “há corvos brancos” não é falsificável, mas verificável.
Donde se conclui que, quando várias teorias
rivais se apresentam, devemos preferir aquelas cuja falsidade ainda não está
estabelecida. Popper chega a outra conclusão: todas as leis e teorias
científicas são, em sua essência, hipotéticas e conjecturais. Por exemplo,
nunca houve uma teoria tão bem estabelecida ou confirmada quanto
a de Newton. No entanto, a teoria de Einstein veio mostrar que a teoria
newtoniana não passa de uma hipótese ou conjectura. (...) Dizer que uma teoria
é, no momento, tão bem estabelecida quanto possível, é reconhecer que
ela resiste a todos os testes possíveis de falsificação. Deste ponto de vista,
Popper não considera como científica a teoria psicanalítica, porque não podemos
indicar a priori nenhuma experiência e nenhum fato capazes de abalar ou
refutar essa teoria.
Esta posição de Popper opõe-se diretamente às
concepções oriundas do Círculo de Viena. Num certo sentido, foi contra os
empiristas lógicos que ele escreveu A lógica da descoberta científica
(1934).
(...) A crítica de Popper à concepção de Carnap
pode ser resumida em três observações:
a) aquilo que procuramos nas ciências é um
elevado conteúdo de informação e não um alto nível de probabilidade;
b) o que pretendemos alcançar é um alto grau de
confirmação, mas que esteja apoiada num elevado conteúdo de informação;
c) a busca de uma probabilidade elementar
implica a adoção de uma regra que, contrariamente a todos os princípios,
favoreça sistematicamente as hipóteses ad hoc (Conjectures and
Refutations, p.287)
Segundo Popper, não podemos dispor de uma razão
séria para considerar que uma teoria seja verdadeira nem tampouco que ela
possua um elevado grau de probabilidade. Aquilo que o grau de confirmação de
uma teoria faz intervir são tentativas de confirmação negativa
realizadas num determinado momento histórico, sem fornecer nenhuma garantia
quanto ao seu comportamento futuro (Objective Knowledge, p. 18). Isto,
porém, não o impede de admitir que as teorias científicas aproximam-se mais ou
menos da verdade. A fim de exprimir melhor essa idéia de proximidade com a
verdade, Popper introduz o conceito de verossimilitude lógica.
(...) Popper dá o exemplo da comparabilidade
intuitiva da teoria de Einstein (E) e da teoria de Newton (N),
donde se pode concluir que a teoria einsteiniana é virtualmente melhor a
newtoniana:
a) a toda questão à qual N dá uma
resposta, também E dá uma resposta pelo menos tão precisa quanto a de N,
quer dizer, o conteúdo de N é menor ou igual ao de E;
b) há questões que E pode responder,
enquanto N não pode; neste caso, o conteúdo de N é menor que o de
E.
3. Algumas conclusões
1. O que nos interessou na filosofia das ciências de Popper foi sua
posição contrária ao “princípio do empirismo”, fundando o “verificacionismo”
epistemológico das teorias científicas. (...) Para ele, não deve interessar-nos
saber como uma teoria científica é descoberta pela primeira vez.
Esta questão pertence ao domínio pessoal. O que importa saber é como as
teorias se verificam. Não há um método lógico para descobrir idéias.
Toda descoberta contém, diz Popper, “um elemento irracional”.
2. (...) Apoiando-se na análise lógica das formulações científicas, não
podemos passar, por indução, da observação dos dados empíricos às hipóteses
propriamente científicas.
3. (...) Popper em “A lógica das ciências” formula a tese número
onze: “É absolutamente errôneo conjecturar que a objetividade da ciência
dependa da objetividade do cientista. E é totalmente falso crer que o cientista
da natureza seja mais objetivo que o cientista social. O cientista da natureza
é tão partidarista quanto o resto dos homens e, em geral, se não pertence ao
escasso número daqueles que produzem idéias novas, é extremamente unilateral e
partidário no que diz respeito às suas próprias idéias”.
4. (...) Entre Popper e o empirismo de Carnap, (...) a divergência
situa-se unicamente no que diz respeito à natureza da relação lógica
entre os enunciados científicos e a evidência empírica utilizada para
testá-los.
5. (...) Segundo Popper, o que caracteriza o método científico é
justamente o desejo de expor deliberadamente as teorias ao crivo da refutação,
e não o de procurar defendê-las ou preservá-las sistematicamente.
6. Do ponto de vista epistemológico, Popper se considera ao mesmo tempo
um racionalista, um empirista e um realista. Apresenta-se como um inimigo declarado de
toda espécie de convencionalismo, de pragmatismo e de subjetivismo.
7. Ao afirmar que o conhecimento científico não começa nem se
caracteriza pelas percepções ou pela observação, nem tampouco pela coleta dos
dados, mas pela colocação e solução de problemas, Popper chega à
conclusão de que o método das ciências deve consistir em “tentar possíveis
soluções para seus problemas”. As soluções são propostas, mas criticadas.
8. A partir de sua tese sobre o primado do problema, Popper faz
uma crítica ao cientificismo metodológico que tenta impor às ciências
sociais o mesmo método das ciências da natureza. Trata-se de um “naturalismo
errôneo e equivocado”.
9. (...) A epistemologia de Popper caracteriza-se como uma crítica
constante às concepções científicas já existentes, tentando sempre instaurar
novas hipóteses ou conjecturas ousadas, a fim de atingir a explicação
científica, jamais definitiva, mas sempre aproximada. As ciências
não procuram jamais resultados definitivos. As teorias científicas irrefutáveis
pertencem ao domínio do mito. O que deve caracterizar a ciência é a falsificabilidade,
pelo menos em princípio, de suas asserções. As asserções “inabaladas” e “irrefutáveis”
não são proposições científicas, mas dogmáticas.
10. (...) O que importa é que as teorias científicas sejam formuladas do
modo mais aberto e menos ambíguo possível, a fim de estarem sujeitas ao
critério da refutabilidade.
11. (...) Em matéria de epistemologia, Popper possui certas posições
semelhantes de G. Bachelard. Segue uma aproximação comparativa, sugerindo
pontos de concordância:
a) Tanto a filosofia das ciências de Popper
quanto a de Bachelard caracterizam-se por serem epistemologias críticas e
polêmicas, tentando “reformular” os conceitos científicos existentes e
“reformar” os conceitos filosóficos a respeito da ciência. Ambas as filosofias
são “antiempiristas” e racionalistas e defendem a “tese” segundo a qual as
ciências devem produzir, a cada momento, suas próprias normas de verdade.
b) Ambas as “filosofias das ciências” estão
fundadas no princípio epistemológico de base, segundo o qual o conhecimento
científico jamais atinge uma verdade objetiva, absoluta. A ciência só nos
fornece um conhecimento provisório (Popper) e aproximado
(Bachelard). A ciência está em constante modificação (Popper) ou em
permanente retificação (Bachelard). Não podemos identificar “ciência” e
“verdade”. Nenhuma teoria científica pode ser encarada como verdade final (Popper)
ou como saber definitivo (Bachelard). A objetividade científica reside
única e exclusivamente no trabalho de crítica recíproca dos
pesquisadores (Popper) ou é resultado de uma construção, de uma conquista
e de uma retificação dos fatos da experiência pela Razão
(Bachelard). Uma teoria científica se coloca permanentemente em estado de risco
(Popper), ou, no dizer de Bachelard, “no reino do pensamento, a imprudência
é um método”.
c) Segundo Popper, “a crença segundo a qual é
possível principiar com observações puras, sem que elas se façam acompanhar por
algo que tenha a natureza de uma teoria, é uma crença absurda”. Ou seja,
todas as observações já são interpretações de fatos observados à luz de
uma teoria. Segundo Bachelard, toda constatação supõe a construção;
toda prática científica engaja pressupostos teóricos.
d) Popper
admite que, quanto mais específicos forem os enunciados empíricos, mais
probabilidade eles terão de se revelarem errôneos, mas também fornecerão
melhores conteúdos informativos. Por sua vez, a epistemologia de Bachelard se
caracteriza pelo esforço de apreender a lógica do erro para reconstruir uma lógica
da descoberta da verdade, como “refutação” dos erros, mas também como uma
tentativa de submeter as verdades aproximadas da ciência e os métodos
que ela utiliza a uma retificação metódica e permanente. Neste
particular, Popper não se interessa pela lógica da invenção ou da
criação. Talvez Bachelard venha completar Popper, ao postular a descoberta
metódica, na ciência, de um ars inveniendi, em oposição à ars
probandi do empirismo epistemológico e levando a um maior aprofundamento a ars
refutandi de Popper. (...) Tanto Bachelard quanto Popper contestam a
epistemologia positivista segundo a qual podemos separar a comprovação
dos fatos da elaboração teórica de que os fatos científicos extraem seu
sentido. (...) Segundo eles, nenhum enunciado teórico pode ser tido como
definitivamente estabelecido: permanece a possibilidade teórica de se descobrir
novos meios capazes de questionar as observações atuais e de rejeitar a
teoria que elas validam.