A
Formação do Espírito Científico
Tornar geométrica a representação, isto é, delinear os fenômenos e ordenar em série
os acontecimentos decisivos de uma experiência; eis a tarefa primordial em que
se firma o espírito científico. (...) O
pensamento científico é levado para “construções” mais metafóricas que reais,
para “espaços de configuração”, dos quais o espaço sensível não passa, no
fundo, de um pobre exemplo. (...) A ciência da realidade já não se contenta com
o como fenomenológico; ela procura o porquê matemático.
(...) Quando se consegue formular uma lei
geométrica, realiza-se uma surpreendente inversão espiritual, viva e suave
como uma concepção; a curiosidade é substituída pela esperança de criar.
(...) As forças psíquicas que atuam no
conhecimento científico são mais confusas, mais exauridas, mais exitantes do
que se imagina quando consideradas de fora, nos livros em que aguardam pelo
leitor. É imensa a distância entre o
livro impresso e o livro lido, entre o livro lido e o livro compreendido,
assimilado, sabido.
(...) Não é de admirar que essa geometrização
tão difícil e tão lenta apareça por muito tempo como conquista definitiva e
suficiente para constituir o sólido espírito científico, tal como se vê no século
XIX. O homem se apega àquilo que foi
conquistado com esforço. Será necessário, porém, provar que essa geometrização
é um estágio intermediário.
(...) Em sua formação individual, o espírito
científico passaria necessariamente pelos três estágios seguintes, muito mais
exatos e específicos que as formas propostas por Comte:
1o. O estado concreto, em que
o espírito se entretém com as primeiras imagens do fenômeno;
2o. O estado concreto-abstrato,
em que o espírito acrescenta à experiência física esquemas geométricos e se
apóia numa filosofia da simplicidade;
3o. O estado abstrato, em que
o espírito adota informações voluntariamente subtraídas à intuição do espaço
real, (...) desligadas da experiência imediata e até em polêmica declarada com
a realidade primeira, sempre impura, sempre informe.
(...) Criar e manter um interesse vital pela
pesquisa desinteressada não é o primeiro dever do educador? (...) Sem esse interesse, a paciência
científica seria sofrimento. Com esse interesse, a paciência é vida espiritual.
Estabelecer a psicologia da paciência científica significa acrescentar (...)
uma lei dos três estados de alma:
1o. Alma pueril ou mundana,
animada pela curiosidade ingênua, cheia de assombro diante do mínimo fênomeno
instrumentado, brincando com a física para se distrair e conseguir um pretexto
para uma atitude séria, (...) passiva até na felicidade de pensar;
2o. Alma professoral, ciosa
de seu dogmatismo, imóvel na sua primeira abstração, fixada para sempre nos
êxitos escolares da juventude, repetindo ano após ano o seu saber, impondo suas
demonstrações voltada para o interesse dedutivo, sustentáculo tão cômodo da
autoridade, (...) ou dando aula a qualquer burguês como faz o professor
concursado;
3o. A alma com dificuldade de
abstrair e de chegar à quintessência, consciência científica dolorosa,
entregue aos interesses indutivos sempre imperfeitos, no arriscado jogo do
pensamento sem suporte experimental estável.
(...) O amor pela ciência deve ser um dinamismo
psíquico autógeno. No estado de pureza alcançado por uma psicanálise do
conhecimento objetivo, a ciência é a estética da inteligência.
(...) A experiência científica é (...) uma
experiência que contradiz a experiência comum. (...) Como a experiência comum
não é construída, não poderá ser efetivamente verificada. Ela permanece um fato. Não pode criar uma
lei.
(...) Entretanto, o epistemólogo – que nisso se
difere do historiador – deve destacar as idéias fecundas entre todos os
conhecimentos de uma época.
Quando se procuram as condições psicológicas do
progresso da ciência, logo se chega à convicção de que é em termos de
obstáculos que o problema do conhecimento científico deve ser colocado.
(...) É no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de
imperativo funcional, lentidões e conflitos.
É aí que aparecem causas de estagnação e até de regressão, causas de
inércia às quais serão chamadas pelo nome de obstáculos epistemológicos. (...)
No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior,
destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio
espírito, é obstáculo à espiritualização.
(...) Quando o espírito se apresenta à cultura
científica, nunca é jovem. Aliás, é bem velho, porque tem a idade de seus
preconceitos. Aceder à ciência é
rejuvenescer espiritualmente, é aceitar uma brusca mutação que contradiz o
passado.
A ciência (...) opõe-se absolutamente à
opinião. (...) A opinião está, de direito, sempre errada. A opinião pensa
mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. (...) Não
se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ser superado.
(...) Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é
evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído.
O conhecimento adquirido pelo esforço
científico pode declinar. A pergunta abstrata e franca se desgasta: a resposta
concreta fica. A partir daí a atividade espiritual se inverte e se bloqueia. Um
obstáculo epistemológico se incrusta no conhecimento não questionado. Hábitos
intelectuais que foram úteis e sadios podem, com o tempo, entravar a pesquisa.
(...) A idéia ganha assim uma clareza intrínseca abusiva. (...). Um valor em si
opõe-se a circulação dos valores. É fator de inércia para o espírito. “Grandes
homens são úteis à ciência na primeira metade de sua vida e nocivos na outra
metade”.
(...) A inteligência sancionada por êxitos
precoces (...) se capitaliza qual riqueza material. Admitindo até que uma cabeça bem feita escape ao
narcisismo intelectual, pode-se dizer que uma cabeça bem feita é infelizmente
uma cabeça fechada. É um produto de escola.
Isso implica uma reorganização total do sistema
do saber. A cabeça bem feita precisa então ser refeita. Ela muda de espécie.
Assim, pelas revoluções espirituais, o homem torna-se uma espécie mutante, uma
espécie que tem necessidade de mudar, que sofre se não mudar. Espiritualmente,
o homem tem necessidade de necessidades.
(...) Além disso, a ciência também é ávida de
unidade, tende a considerar fenômenos de aspectos diversos como idênticos,
busca simplicidade ou economia nos princípios e métodos. Tal unidade seria logo encontrada se a
ciência pudesse contentar-se com isso.
(...) Em todas as ciências rigorosas, um
pensamento inquieto desconfia das identidades mais ou menos aparentes e
exige sem cessar mais precisão e mais ocasiões de distinguir. Em resumo, o homem movido pelo espírito
científico deseja saber, mas, para, imediatamente, melhor questionar.
A noção de obstáculo epistemológico pode
ser estudada no desenvolvimento histórico do pensamento científico e na prática
da educação. (...) A história, por princípio, é hostil a todo juízo normativo.
(...) O epistemólogo deve, portanto, fazer uma
escolha nos documentos coligidos pelo historiador. Deve julgá-los da
perspectiva da razão, e até da perspectiva da razão evoluída, porque é só com
as luzes atuais que podemos julgar com plenitude os erros do passado
espiritual. Portanto, é o esforço da
racionalidade e de construção que deve reter a atenção do epistemólogo.
Percebe-se assim a diferença entre o ofício de
epistemólogo e o de historiador da ciência. O historiador deve tomar as idéias
como se fossem fatos. O epistemólogo deve tomar os fatos como se fossem idéias,
inserindo-as num sistema de pensamento. Um fato mal interpretado por uma época
permanece, para o historiador, um fato.
Para o epistemólogo, é um obstáculo, um contra-pensamento.
(...) Na educação, a noção de obstáculo
pedagógico também é desconhecida. Os professores de ciências, mas do que os
outros, não compreendem que alguém não compreenda. Poucos são os que se
detiveram na psicologia do erro, da ignorância e da irreflexão. (...) Não levam
em conta que o adolescente entra na aula de física com conhecimentos empíricos
já constituídos: não se trata, portanto, de adquirir uma cultura
experimental, mas de mudá-la, derrubar os obstáculos já sedimentados.
(...) Logo, toda cultura científica deve
começar por uma catarse intelectual e afetiva.
(...) O educador não tem o senso do fracasso
justamente porque se acha um mestre. Quem ensina, manda. Daí, a torrente de
instintos.
(...) De maneira mais precisa, detectar os
obstáculos epistemológicos é um passo para fundamentar os rudimentos da
psicanálise da razão.
(...) Logo depois do fascínio da observação
particular e colorida, é possível observar o perigo de seguir as generalidades
de primeira vista, pois como diz tão bem d’Alembert, generalizam-se as
primeiras observações no instante seguinte, quando não se observa mais nada.
(...) Da observação ao sistema, passa-se assim de olhos deslumbrados a olhos
fechados.
(...) Assim que uma dificuldade se revela
importante, pode-se ter a certeza de que, ao superá-la, vai-se deparar com um
obstáculo oposto. Tal regularidade na dialética dos erros não pode provir
naturalmente do mundo objetivo. Ela procede da atitude polêmica do pensamento
científico diante da cidadela dos sábios. (...) É sobretudo numa ciência jovem
que se encontra essa indesejável originalidade que só contribui para reforçar
os obstáculos contrários.
(...) Além disso, (...) há o perigo da
explicação pela unidade da natureza, pela utilidade dos fenômenos
naturais. Há ainda o obstáculo verbal, isto é, a falsa explicação obtida
com a ajuda de uma palavra explicativa, nessa estranha inversão que pretende
desenvolver o pensamento ao analisar um conceito, em vez de inserir um conceito
particular numa síntese racional.
Naturalmente, o obstáculo verbal leva ao exame
de um dos mais difíceis obstáculos a superar: o substancialismo, a explicação
monótona das propriedades pela substância.
(...) Há ainda o obstáculo animista nas
ciências físicas. Ele foi quase
totalmente superado pela física do século XIX, mas foi muito visível nos
séculos XVII e XVIII.
(...) Com a idéia de substância e com a idéia
de vida, introduzem-se nas ciências físicas inúmeras valorizações que
prejudicam os verdadeiros valores do pensamento científico. Propõe-se,
portanto, psicanálises especiais para libertar o espírito científico desses
falsos valores.
(...) Na formação do espírito científico, o
primeiro obstáculo é a experiência primeira, a experiência colocada antes e
acima da crítica, que é, necessariamente, elemento integrante do espírito
científico. Já que a crítica não pôde intervir de modo explícito, a experiência
primeira não constitui uma base segura.
(...) Eis, portanto, a tese filosófica a se
sustentar: o espírito científico deve formar-se contra a Natureza,
contra o que é, em nós e fora de nós, o impulso e a informação da Natureza,
contra o arrebatamento natural, contra o fato colorido e corriqueiro.
A
Epistemologia Histórica de G. Bachelard
Para compreendermos o
projeto epistemológico de G. Bachelard, é indispensável que situemos seu
pensamento dentro do contexto em que se constroem as ciências hoje em dia.
Porque toda a sua obra está marcada por uma reflexão sobre as filosofias
implícitas nas práticas efetivas dos cientistas. Numa palavra, o projeto de
Bachelard consiste “em dar às ciências a filosofia que elas merecem”.
(...) Uma reflexão séria sobre a ciência não
pode deixar de constatar que fazer ciência é algo extremamente difícil: ela se
desenvolve com uma força explosiva e o homem atual encontra-se, cotidianamente,
diante de técnicas oriundas da ciência “fundamental”, e que, fundamentalmente,
ele não compreende. Isto constitui para ele uma causa de profunda humilhação.
(...) E é por causa dessa humilhação (...) que o homem comum se entrega a todos
os tipos de compensações mais ou menos (...) rotuladas de científicas.
(...) Por definição, a ciência ignora os
valores. (...) Nem tampouco preocupa-se com a imaginação criadora. Por isso,
não pode haver nem ética, nem estética objetivas. E como a ética e a arte são
indispensáveis ao homem, são os filósofos e os “literatos” que vão elaborá-las,
não os cientistas. (...) Todavia todo conhecimento científico, (...) funda-se
numa ética, cujo critério fundamental não é o homem, mas o próprio conhecimento
objetivo.
(...) Uma das funções
essenciais da filosofia, hoje em dia, é a de construir uma epistemologia.
Existem atualmente várias epistemologias. Em primeiro lugar, há toda uma
corrente epistemológica que poderíamos chamar de lógica. Ela visa ao
estudo e à construção da linguagem científica, bem como uma investigação sobre
as regras lógicas que presidem a todo enunciado científico correto (positivismo
anglo-saxônio). Em seguida, há toda uma escola que se propõe a elucidar a
atividade científica a partir de uma psicologia de inteligência: a
epistemologia genética, tal como ela é praticada por Piaget. Enfim, há uma
corrente que se propõe muito mais a uma análise da história das ciências e de
suas revoluções: (...) a epistemologia de Bachelard.
(...) Bachelard
costumava dizer (...) que a epistemologia consistia, no fundo, na história da
ciência como ela deveria ser feita. Queria dizer (...) que toda reflexão
efetiva, capaz de estabelecer o verdadeiro estatuto das ciências formais
(lógica e matemática) e das ciências empírico-formais (ciências físicas,
biológicas e sociais), deve ser necessariamente histórica. (...) Não querendo
construir uma epistemologia a priori, dogmática, impondo
autoritariamente dogmas aos cientistas, Bachelard se opôs a A. Comte, sobretudo
quando este pretendeu coordenar as diversas ciências e indicar-lhes os caminhos
definitivos a seguir. Bachelard se propôs a construir uma epistemologia visando
à produção dos conhecimentos científicos sob todos os seus aspectos: lógico,
ideológico, histórico... (...) O que importa é que se descubram a gênese, a
estrutura e o funcionamento dos conhecimentos científicos.
(...) A doutrina
positivista, cujo fundador foi A. Comte (1798-1857), teve profunda influência
na ciência posterior. Ela é constantemente retomada sob novas formas. Pode ser
expressa, de um ponto de vista filosófico, pela confiança excessiva que a
sociedade industrial depositou na ciência experimental. Embora pretenda negar
toda filosofia, ela elabora uma verdadeira filosofia da ciência, cujos
princípios poderão ser resumidos nas seguintes afirmações: a) as únicas
verdades a que podemos e devemos nos referir são os enunciados das ciências
experimentais: trata-se de verdades claras, unívocas e imutáveis; b) todo e
qualquer outro tipo de juízo deve ser abandonado como sendo teológico ou
filosófico; c) a função das ciências experimentais não é a de explicar
os fenômenos, mas a de prevê-los, e de prevê-los para dominá-los;
o que importa não é saber o “porquê”, mas o “como” das ciências; d) o
aparecimento da ciência esboçaria, para a humanidade, um mundo inteiramente
novo, possibilitando-o viver na “ordem” e no “progresso”.
Portanto, para Comte, o
papel da filosofia ficaria reduzido a uma função de síntese vulgarizadora e de
pregação moral. Todavia, não tardou a serem mostradas as insuficiências filosóficas
do positivismo.
(...) Com Bachelard,
surgiu (...) a epistemologia como produto da ciência criticando-se a si mesma.
Para ele, a verdadeira questão diz respeito à força e aos poderes da ação
racionalista. Mas, ao mesmo tempo, à força e ao poder da atividade criadora e
poética.
A obra deste filósofo,
historiador das ciências e epistemólogo (1884-1962), de formação química, tem
uma dupla vertente: uma científica, a outra poética.
(...) Para Bachelard, o
instante é algo inteiramente diferente. Ele é trágico, pois só
pode renascer com a condição de morrer. O instante já é solidão, que nos
isola de nós mesmos e dos outros, pois rompe com o nosso passado mais caro. E o
tempo é a consciência dessa solidão. Donde a coragem impor-se
como a necessidade de luta contra a solidão. (...) Devemos nos definir pela
tendência que tivermos de nos ultrapassar e de nos transformar.
(...) O homem é ao mesmo tempo Razão e
Imaginação. Não há ecletismo, mas dualismo ascético. Por isso, a obra de
Bachelard se apresenta como uma dupla pedagogia: da Razão e da
Imaginação. Não devemos confundir essas pedagogias: há o homem diurno da
ciência e o homem noturno da poesia.
(...) Não é
contemplando, mas construindo, criando, produzindo, retificando,
que o espírito chega à verdade. (...) Não-platônica e não-kantiana, a filosofia
de Bachelard considera a verdade como nosso produto, (...) mas que se
volta para seu animador, levando-o a perceber seus próprios enunciados como
obstáculos à compreensão. Porque os verdadeiros obstáculos da ciência não são
os conhecimentos do “senso comum”, mas os sistemas relativamente coerentes de
pensamentos generalizados abusivamente.
(...) E o progresso do
espírito científico se faz por rupturas com o senso comum. A ciência,
como o homem, não é criação da necessidade, mas do desejo. Por outro
lado, ela é intervencionista. Por isso, deve ser feita numa comunidade
de pesquisas e de críticas, para não se tornar totalitária. E é por isso que
Bachelard substitui o Cogito cartesiano por um Cogitamus. Um
homem só, diz ele, é uma péssima companhia.
(...) Bachelard funda a
epistemologia como “ciência” respeitada, através do estudo sistemático do modo
como os conceitos de “verdade” e de “realidade” deveriam receber um sentido
novo. Sua dialética é uma “dialética do não”. A negatividade identifica-se com
o movimento de generalização reorganizadora do saber, pela qual as contradições
são superadas como ilusões de oposição.
(...) Bachelard afirma
que a filosofia não tem objeto. Ela tem o objeto dos outros. E é por isso que
ela deve determinar-se por sua distância relativamente ao conhecimento
científico.
(...) O que Bachelard
pretende mostrar é que a ciência contemporânea obrigou-nos a renunciar à
pretensão de um saber universal. O filósofo retoma o projeto que outrora foi o
seu: compreender a relação do homem com seu saber.
Pela introdução da
noção de ruptura epistemológica, Bachelard se opõe às tradições
positivas. É preciso que se reconheça que, nos fatos, há ciências coexistindo
com ideologias. (...) Donde a importância de uma filosofia que terá por função distinguir,
nos discursos científicos, aquilo que pertence à prática científica daquilo que
provém das ideologias. Donde a função de vigilância, atribuída por
Bachelard a esta nova epistemologia.
(...) E o conceito que sustenta todo o
“projeto” de Bachelard é o de obstáculo epistemológico, que designa os
efeitos sobre a prática científica das relações que o cientista mantém com ela.
O obstáculo aparece no momento da constituição do conhecimento sob a forma de
um “contra-pensamento”; posteriormente, como “parada do pensamento”, isto é,
como uma resistência ou inércia do pensamento ao pensamento.
(...) O que deve ser
abandonado é uma filosofia que coloca seus princípios como intangíveis e que
afirma suas verdades primeiras como totais e acabadas. O filósofo não pode ser
o homem de uma só doutrina: idealista, racionalista ou positivista. Porque a
ciência moderna não se deixa enquadrar numa doutrina exclusiva. O filósofo não
pode ser menos ousado e corajoso que os cientistas. O empirismo precisa ser compreendido.
Por outro lado, o racionalismo precisa ser aplicado. É isto que faz o
progresso filosófico relativamente às ciências. Não há nenhuma intenção, em
Bachelard, de humilhar as filosofias. Ele quer apenas acordá-las de seu “sono
dogmático”, para nelas suscitar o desejo de revalorizar sua situação em relação
as ciências contemporâneas.
O que devemos reter da
vertente poética da obra de Bachelard? A poesia, ou melhor, as poesias. (...) A
imaginação não é uma faculdade entre outras. Ela é o poder constitutivo radical
que nos afirma como sujeitos e os fenômenos como objetos.
No entanto, para vencer
a solidão do instante, a poesia vai até mais longe do que a ciência,
pois ela aceita o que ele tem de trágico. (...) Contra o tempo horizontal que
corre de modo monótono, Bachelard escolhe o tempo que se verticaliza na
descoberta poética.
É a imaginação que nos
faz mergulhar na profundidade das coisas. Ela nos faz descobrir as forças vivas
da natureza. (...) O verdadeiro mundo de Bachelard é o da sobre-realidade.
É por isso que ele diz que o homem é este ser que tem o poder de “despertar as
fontes”.
A sobre-realidade
é a própria realidade apreendida em sua maior profundidade: a função do irreal
é o dinamismo do espírito. (...) O mundo é belo antes de ser verdadeiro. É
admirado antes de ser verificado. A obscuridade do “eu sinto” deve primar sobre
a clareza do “eu vejo”. O homem é um ser entreaberto. Quando ele cria, desata
ansiedades. Criar é superar uma angústia. O belo não é um simples arranjo. Tem
necessidade de uma conquista. O mundo deixa de ser opaco, quando olhado pelo
poeta. Este lhe dá mobilidade. O homem é um ser que se oferece à vida, deixa-se
possuir por ela, para poder possuí-la. Olha o presente como uma promessa de
futuro. Uma de suas forças é a ingenuidade, que o faz cantar seu próprio
futuro.
(...) O mundo é a provocação do homem. Este
se revela criador, fonte única, despertador de mundos: o da ciência e o da
arte. É o ser que responde a todas as provocações, sobretudo à do instante,
pela criação e pela invenção. (...) Despertar o mundo, eis a coragem da
existência. E esta coragem é o trabalho da pesquisa e da invenção. O essencial
é que permaneçamos sempre em estado de apetite. É por isso que Bachelard se definia
a si mesmo, ao formular sua oração: “Fome nossa de cada dia nos daí
hoje”.
A influência de
Bachelard (...) faz dele um dos autores que mais marcaram o último quarto do
século. Ele também foi um fenomenólogo. Husserl definia a fenomenologia como um
“retorno às coisas”. Neste sentido, Bachelard foi um grande fenomenólogo: de um
lado, mostrando que a ciência deveria ser uma “fenomenotécnica”; do outro,
conduzindo sua reflexão sobre a imaginação até o ponto de ela poder manifestar
seu poder “ontológico”, sua densidade de ser. O homem habita poeticamente o
mundo, embora seja habitado pelo saber.
(...) Segundo
Canguilhem, Bachelard revolucionou a epistemologia contemporânea, não somente
por ter introduzido os conceitos-chave de “Recorrência”, “Vigilância”, “Obstáculo”
e “Corte” epistemológicos, mas por ter reconhecido que “a ciência não é o
pleonasmo da experiência”: ela se faz contra a experiência.
(...) É para provar a
coerência desta epistemologia que Canguilhem formula um corpo de axiomas:
1. Primado teórico do erro: A
objetividade de uma idéia será mais clara e mais distinta, na medida em que
aparecer sobre um fundo de erros mais profundos e mais diversos.
2. Depreciação especulativa da intuição:
“As intuições são muito úteis: elas servem para ser destruídas”.
3. Posição do objeto como perspectiva das
idéias: “Nós compreendemos o Real na medida em que a necessidade o
organiza... Nosso pensamento vai ao Real, não parte dele”.
Em outras palavras: “O ponto de vista cria o
objeto” (Saussure). Quer dizer, o real nunca toma a iniciativa, pois só poderá
responder algo quando nós o interrogarmos. (...) “Os fatos não falam”
(Poincaré). Assim, a epistemologia de Bachelard contribuiu, definitivamente,
para que se destruísse a crença na “imortalidade científica dos fatos” e em sua
“imaculada concepção” (Nietzsche).